MARE NOSTRUM

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TURNER

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

NAVEGAÇÃO EM SOLITÁRIO



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A HOWARD BLACKBURN

 

 (Howard Blackburn)


"Há três tipos de homens: os vivos, os mortos e os que vão para o mar."


Os navegadores solitários enfrentam quatro problemas, que numa primeira abordagem nos surgem parcialmente apavorantes:
-         a arte de navegar
-         a preparação física e psicológica;
-         o mar alto; e
-         a solidão.

Na nossa perspectiva o factor solidão é o menos preocupante, exceptuando-se os casos de doença súbita ou acidente. Neste enquadramos a queda ao mar do solitário com o barco a afastar-se sem hipótese de ser alcançado, aguardando ali, no meio do oceano imenso a morte por hipotermia, esgotamento ou ataque de um predador – daí a importância de um arnês. 
A solidão tem também o inconveniente de aumentar substancialmente as inúmeras dificuldades que o navegador tem de enfrentar nos períodos de sono, o que de certo modo se relaciona com a sua preparação física e psicológica, nomeadamente na sua capacidade de reacção a condições adversas.
Mas quem conhece e navega em pequenos veleiros – de 8 a 11 metros – sabe como a convivência prolongada a bordo num espaço tão exíguo se torna difícil, e até em determinadas circunstâncias verdadeiramente trágica. Realmente difícil é não estar sozinho, sendo certo que uma tripulação de 4 homens é na pluralidade dos casos mais sustentável que a de 2, já que naquela se reconhece na maioria das vezes uma hierarquia e a distribuição de tarefas permite um repouso que conduz a alguma paz psicológica.

No entanto, temos exemplos como o da jangada KON TIKI, que durante três meses ao sabor dos ventos e das correntes percorreu o Pacífico com seis nórdicos a bordo – note-se: nórdicos. Os nórdicos não são franceses, nem italianos nem portugueses...


O solitário confinou-se ao espaço limitado da sua embarcação, que muitas vezes mais não é do que uma parte integrante do seu próprio corpo e alma, e ao ilimitado azul dos mares e dos céus. Ele é o Amo e o Servo. É o Homem Total, a Liberdade de Ser, que se adapta progressivamente ao “silêncio” e à paz da natureza sem gente.
Daí que a solidão a dois seja muito mais temida que a solidão de um.
O solitário é um marinheiro por excelência, um amante do mar, que com ele intenta viver para sempre, até que a morte os separe – ou una... – percorrendo os oceanos com as suas velas aladas.



O navegador para além de dominar a arte de navegar, tem de escolher o veleiro que se adapte aos fins que se propõe, o que nem sempre ou quase nunca é tarefa fácil. O barco tem de ter o mínimo de habitabilidade e de conforto, ser manobrável com o menor esforço para o homem e ter uma construção sólida, para além de ter de se encontrar o equilíbrio entre a parte imersa e emersa, problema que é manifesto nos barcos pequenos.
Para um homem só, o barco deve medir de fora a fora entre 6,5 e 11 metros, capaz de atingir velocidades da ordem dos 8 nós (nó = a uma milha/hora – milha = 1852 metros). Se for muito pesado, comporta-se no mar como um pontão ou uma rocha, resistindo ao temporal pela força; se leve faz cedências como a gaivota na crista de uma onda.
Os navegadores de outrora, sem leme de vento nem leme automático, conhecedores das rotas, sabiam que cerca de 2/3 da volta ao mundo era feita em zonas de alísios. O veleiro ideal era o que conseguia navegar com leme amarrado, com vento de popa ou muito de través. Quando o barco não estava preparado para o fazer, o navegador tinha de estar sempre ao leme e para dormir via-se forçado a colocá-lo de capa.
Não podemos menosprezar aqui a valiosa invenção das velas gémeas por Marin Marie – a cada oscilação uma das velas gémeas actua sobre a cana do leme, corrigindo o rumo.



O PRIMEIRO NAVEGADOR SOLITÁRIO – J. M. CRENSTON

Segundo parece, o primeiro navegador solitário de que há história foi J. M. Crenston, de nacionalidade americana, que no TOCCA, um cúter de 12,30 m, partindo de Nova Bedford passou pelo Cabo Horn ou pelo não menos temível Estreito de Magalhães, aterrando em S. Francisco, após ter percorrido 13.000 milhas em 226 dias.



ALFRED JOHNSON – PRIMEIRA TRAVESSIA DO ATLÂNTICO

A primeira travessia do Atlântico foi realizada por um homem simples. Alfred Johnson com cerca de trinta anos, utilizando o seu dóri de 6,10 metros que adaptou, sabe Deus como..., e aparelhou com uma quadrangular latina, giba e traquete – o Centennial, já que a travessia foi projectada para celebrar o centenário da independência dos Estados Unidos da América.
No dia 25 de Junho de 1876 partiu de Shake-Harbor, na Nova Escócia, sul da Costa Leste do Canadá.
A 10 de Agosto, o Centennial após 46 dias de mar, depois de ter passado por inúmeras vicissitudes aterrou em Abercastel, no País de Gales. Dois dias depois partiu para Liverpool onde entrou a 17 de Agosto.
Pela primeira vez, um navegador solitário havia atravessado voluntariamente o Atlântico.



Outros se lhe seguiram, nomeadamente em Maio de 1877, CRAPO e a mulher, no New-Bedford, uma espécie de baleeira com 6 metros.


Em 1878, WILLIAMS ANDREWS acompanhado pelo irmão, no Nautilus, uma chata com vela latina de 12,5 metros quadrados e mastro de 6,5 m, calado de 45 cm – espante-se... – e de manobras muito simplificadas, pois bastava-lhes uma adriça, uma escota e um palanco de amura.


Agora uma referência muito especial e também uma homenagem. Alguém cuja história, ainda mais que o feito narrado no excelente livro de JOSHUA SLOCUM, bíblia de todos os navegadores solitários – veremos adiante –, me influenciou desde a juventude, quando apenas com os olhos via passar os veleiros no Tejo, aproveitando todos os convites de navegantes em busca de tripulação:

HOWARD BLACKBURN.





HOWARD BLACKBURN

Howard Backburn é aquele marinheiro, aquele Homem no verdadeiro sentido da palavra, que todos nós gostaríamos de ser, melhor, de imitar. O orgulho de todos os marinheiros. São homens como este, que minimizam a minha “misantropia selectiva”.
Personifica a coragem, a tenacidade e a resistência a todo o tipo de condições adversas. A vontade irresistível de viver e de vencer.
Nasceu a 17 de Fevereiro de 1858 numa aldeia situada no litoral da Nova Escócia, num berço de maresia, algas e mar grosso.
Os marinheiros canadianos da Nova Escócia eram apelidados de Blue-nose. Howard era um Blue-nose, que se veio a naturalizar americano.
Estes marinheiros e pescadores da Nova Escócia, bem como os de Gloucester e de Boston, pescavam quer no Verão quer no Inverno no Grande Banco da Terra Nova, em mares revoltos, num “trabalho maldito”. Os antigos pescadores dos bacalhoeiros portugueses que vo-lo digam. Grandes marinheiros esses pescadores, que não se limitavam a pescar no Verão e pescavam no inferno glacial do Inverno, com o mar sempre a “trabalhar” em vagas alterosas, neve, gelo, vento e brumas constantes.


Howard Blackburn iniciou a sua vida marítima aos 15 anos. Em Abril de 1879, com 21 anos, já possuidor de larga experiência, passou a residir em Gloucester e dedicou-se à pesca do alto.

Em 1833 estava embarcado no palhabote Grace L. Fears, e num dia do mês de Fevereiro, no seu dóri com o companheiro Tom Welch foi levantar as linhas.
De tempo favorável, mar limpo, levantou-se um temporal e malgrado todos os esforços, com a neve a cair copiosamente, limitando a visibilidade a escassos metros, viram-se subitamente afastados do palhabote.
O dóri começou a cobrir-se de gelo durante a noite afastando-se cada vez mais. Para aliviar o peso da pequena embarcação, minimizando o perigo de afundamento por adernamento, Howard alijou ao mar todo o pescado, deixando a bordo apenas um pequeno bacalhau. A noite foi passada a retirar o gelo acumulado e pela manhã verificaram que o dóri tinha abatido num mar turbulento para posição onde não avistavam nem o palhabote nem terra.
Os dois homens fizeram o rumo de Ocidente na esperança de encontrar a Terra Nova. Mas o mar na sua fúria impedia-os de manobrar e o dóri corria o risco de inundar e adernar.

Howard Blackburn tirou as luvas e colocou-as no fundo do dóri; erro ou azar que lhe iria custar bem caro. Tom tirava água do fundo do barco com um balde e as luvas foram borda fora... Meu Deus, como umas simples luvas podem fazer a diferença entre a vida e a morte.
Algum tempo depois as mãos de Howard estavam brancas e insensíveis. Aí terá pensado que se as mãos gelassem, não poderia auxiliar Tom a remar para terra, tarefa difícil para dois homens e consequentemente quase impossível para um, por via do esgotamento a que estavam sujeitos. Com as mãos praticamente perdidas, dobrou os dedos em torno do punho de um remo, aguardando que gelassem, o que ocorreu decorridos escassos 20 minutos – imagine-se o frio.

Os trabalhos continuaram no dia seguinte: era necessário esvaziar continuamente o dóri e retirar o gelo acumulado.
Sem que a tempestade amainasse, chegou a noite com todo o seu breu e Tom vencido pela fome, pela sede, pelo frio e pela fadiga, começou a delirar e estendeu-se no fundo do dóri abrigando-se das rajadas geladas. Pedia encarecidamente a Howard que se não afastasse dele. A morte chamava-o e ele pressentia-o. Um verdadeiro marinheiro ouve a voz surda do Oceano quando este o chama a si.
Tom Welch morreu naquela noite. Ao nascer do sol estava frio e rígido, coberto de uma camada de gelo que a bruma arrastara tal mortalha de bravo derrotado no seu último combate. Tom era agora mais um amante desse Mar, que cedo clama pelos que ama.
Passou um outro dia e uma outra noite. Howard não comia nem bebia. Não dormia. No meio da gélida tempestade escoava o dóri aguardando a todo o momento a vaga que o levaria definitivamente para o Reino dos Mortos nas profundezas insondáveis.


No terceiro dia o mar aquietou-se. Começou então a usar os remos que lhe arrancavam pedaços de carne das mãos, pedaços do tamanho de uma moeda de dólar. Ainda o Sol se não tinha posto no horizonte, avistou a Ocidente um enorme rochedo para onde se dirigiu. Durante a noite tudo fez para não adormecer; seria a sua morte naquelas paragens geladas. O Sol voltou a nascer e depois de ter passado pelo rochedo, pequena ilha gelada e desabitada, ao meio-dia atingiu terra, entrando durante a tarde num pequeno rio onde nas margens encontrou uma cabana desabitada.
Cinco dias sem comer, beber e dormir.
Dormiu na cabana e no dia seguinte remontou a corrente. Mais uma noite, até que no dia seguinte atingiu uma pequena aldeia de pescadores – Little River.

Howard Blackburn a tudo sobreviveu, mas em dois meses, das mãos geladas iria assistir à queda de todos os seus dedos, até mesmo das últimas falanges dos polegares. Como se não bastasse perdia ainda os dedos dos pés e metade do pé direito.

Ficou três meses em Little River, com o acolhimento gracioso de pobres pescadores, acolhimento que só os grandes e humildes homens sabem dar aos seus Irmãos, e chegou a Gloucester no dia 4 de Junho. Aí, os pescadores organizaram uma subscrição a seu favor, que lhe permitiu abrir uma loja de bebidas, onde os marinheiros gastavam as suas horas de lazer, falando dos seus amores carnais e da sua paixão mística: o Mar.
O homem que não mais poderia ser pescador, era agora dono de um bar, onde as palavras eram bebidas como golfadas de mar e as expressões, sonhos de um Oceano de montanhas libertadoras.


Mas o Mar chama aqueles que o amam, já o dissemos; chama-os para a Vida e para a Morte. A alguns como Joshua Slocum chamou-o para sempre e para o seu amplo e amoroso seio.


Sem nada que o fizesse prever, Blackburn com as suas próprias mãos, sem dedos, iniciou a construção de um veleiro com 9 metros de comprimento, 2,6 m de boca e 1,5 m de calado.
Desconhecendo que destino específico lhe havia de dar, aceitou de bom grado a sugestão de um amigo: “por que não fazer a travessia entre Gloucester nos Estados Unidos e Gloucester em Inglaterra?”.
Sugerido e feito. Armou e aparelhou o Great Western e a 18 de Junho de 1899 partiu para a sua solitária travessia oceânica, manobrando com os cotos.
Decorridos 61 dias de mar aterrou em Gloucester – 18 de Agosto de 1899.
Vendeu então o Great Western, regressando de paquete aos Estados Unidos.
Chegado a Gloucester começou a construir um novo veleiro de quilha corrida, o que lhe permitia navegar com pano reduzido e leme amarrado enquanto dormia, sem necessidade de se pôr de capa. O Great Republic tinha 7,5 m de comprimento, 2,10 m de boca e um calado de 90 cm.


Com este pequeno veleiro decidiu dirigir-se a Lisboa, disposto a bater o record da travessia do Atlântico num veleiro de pequenas dimensões.
38 dias após a partida avistou o Cabo Espichel e no dia seguinte – 39º dia – atracava em Lisboa.

Faleceu com 70 anos o mais corajoso e determinado de todos os marinheiros.


Quando jovem, sonhei imitar o seu feito em sentido inverso – de Lisboa a Gloucester nos E.U.. Obviamente com dificuldades acrescidas por efeito dos ventos dominantes:  
“A bordejar, duas vezes a rota, três vezes o tempo e quatro vezes a cólera...”
Nessa altura tinha a juventude e todas as forças que lhe são inerentes a meu favor. Mas faltava-me o dinheiro. Tinha as cartas do Atlântico, que me custaram uma pequena fortuna, diga-se, e passava algumas horas de noites de insónia a estudar as correntes, os ventos, a rota.
Hoje, pré-velho, como me costumo apelidar, o dinheiro não me falta, mas faltam-me as forças.
Quem sabe?...




PRIMEIRAS TRAVESSIAS DO ATLÂNTICO DA EUROPA PARA A AMÉRICA

Por falar em travessia do Atlântico de Oriente para Ocidente, há que referir ALAIN GERBAULT, o primeiro navegador solitário que realizou tal feito, no Fire-Crest, com 11 metros de comprimento, 2,60 de boca, 1,80 de calado, 3500 Kg de chumbo na quilha e 300 Kg de lastro interior.
Partiu de Cannes no ano de 1923. Realizou a etapa de Gibraltar a Nova Iorque, em 101 dias, navegando pelo sul.


O Capitão inglês, R. D. GRAHAM, foi o primeiro navegador solitário a atravessar o Atlântico de Oriente para Ocidente, mas pelo Norte, no Emanuel, cúter de 9,15 m de comprimento, 2,58 m de boca e 1,50 m de calado. Esta travessia ocorreu no ano de 1933, com partida de Falmouth, atingindo em menos de um mês a Terra Nova, com ventos contrários. Tenha-se em consideração que no Atlântico Norte os ventos sopram de Ocidente.


Agora uma referência especial:


ANN DAVISON foi a primeira mulher a navegar em solitário e a atravessar o Atlântico num sloup marconi de 7 metros de comprimento, 2,15 de boca e 1,40 de calado. Partiu de Plymouth a 18 de Maio de 1952, atingindo as Canárias. Em Janeiro de 1953 está nas Antilhas britânicas e daí dirige-se para Antígua, aportando a Nova Iorque em 25 de Novembro de 1953.



Não nos cabe em tão pequeno artigo enumerar os inúmeros solitários, sendo alguns náufragos como o chinês POON LIM, recordista de sobrevivência no mar sem víveres, marinheiro do cargueiro inglês Ben Lomond, que em Novembro de 1942 foi torpedeado e afundado no Atlântico, tendo passado 130 dias no mar antes de ser encontrado por pescadores a 10 milhas da costa brasileira num estado físico – não mental – lamentável.





Mas existe uma viagem, que abordaremos ainda que sucintamente atenta a sua importância no domínio da sobrevivência no mar.

ALAIN BOMBARD

Bombard, francês de 27 anos de idade, estudante de medicina, intentou demonstrar que é possível atravessar o Atlântico numa canoa pneumática de 4,60 m de comprimento, a que chamou L’Héretique, sem quaisquer alimentos, e pasme-se, sem água. A canoa estava provida de uma pequena vela tão somente operacional com vento de popa ou na melhor das hipóteses de través, atingindo uma velocidade máxima de 3 nós.


Bombard, cientificamente, pretendia demonstrar a possibilidade de sobrevivência no mar, sem qualquer apoio ao nível do “material”, o que teria como consequência imediata um acréscimo de confiança e da moral dos náufragos, salvando-os de morte certa – nos anos 50 calculava-se a existência de milhares de náufragos anuais, dos quais muitos faleciam por se abandonarem as buscas rapidamente.
No ano de 1952 partiu do Mónaco em direcção a Tânger, seguiu para Casablanca, depois Canárias. No dia 20 de Outubro larga de Las Palmas e a 23 de Dezembro aporta nos Barbados.
Em síntese e no que se nos afigura essencial, Bombard demonstrou a real possibilidade de sobrevivência em qualquer local de pesca, alimentando-se de peixe e de plâncton, bebendo água do mar durante um máximo de 4 dias, não ultrapassando em caso algum um litro diário repartido em pequenas doses, até encontrar peixe, sem se desidratar – colocava-se imediatamente dentro de água logo após a ter bebido.
E como é que recolhia a água que não transportava?
Muito simplesmente do soro fisiológico dos peixes, que obtinha espremendo-os ou chupando a sua carne, que depois cuspia.
Realizou a travessia do Atlântico Sul, atingindo os Barbados em 65 dias.



O PACÍFICO E O ÍNDICO 


O Oceano Pacífico tem também um extenso número de histórias e de navegadores, com a agravante – de peso – de ser um mar imenso – chega a atingir 7000 milhas, ou seja, duas vezes o Atlântico.

No Pacífico é notável a viagem de BERNARD GILBOY, a bordo do Pacific, veleiro de 6 metros. Foi recolhido por um navio após ter percorrido 6500 milhas em mais de 160 dias de mar sem escala.

No Índico destacam-se GUILLAUME, HAYTER, bem como MOITESSIER.



JOSHUA SLOCUM – A PRIMEIRA VOLTA AO MUNDO

Se como já vimos, Howard Blackburn é o exemplo do verdadeiro marinheiro, da resistência ao sofrimento, da coragem e da vitória de Eros sobre Tanatos, de todos os circum-navegadores, o primeiro, Joshua Slocum foi indubitavelmente o que mais influenciou todos os que tiveram a ousadia de o imitar, bem como dos que a não tiveram, mas com ela sonharam nas noites de insónia.
O seu livro transformou-se rapidamente na bíblia daqueles que lhe seguiram as pisadas.

Slocum nasceu em 1844. Começou a lidar com o mar muito cedo. Foi capitão de um três mastros durante 20 anos. Este barco naufragou na costa brasileira. Na sequência deste naufrágio, Slocum construiu o Liberdad, veleiro de 10,50 m, com o qual regressou a casa.

Em 1892 começou a reconstruir um sloup, de 11,20 m de comprimento, 4,32 m de boca e 1,27 de calado, de nome Spray, que ficou pronto a navegar em 1894.



O Spray foi construído e aparelhava de modo a poder percorrer longas distâncias com o leme amarrado, desde que com vento de popa.
É interessante anotar que Joshua não sabia nadar...

No ano de 1895 decide dar a volta ao mundo em solitário; seria a primeira vez que tal feito se realizaria.
Parte de Boston em Abril desse ano, chegando a navegar 150 milhas por dia. Dezoito dias depois de ter passado o Cabo Sable atingiu a ilha do Faial nos Açores. Aterrou em Gibraltar nos primeiros dias de Agosto. Evitou a rota do Canal do Suez temendo os piratas, e navegou no sentido contrário. No dia 5 de Outubro atinge Pernambuco, percorre a costa do Brasil e da Argentina, tendo sido vítima de um encalhe que resolveu com alguma dificuldade e com o auxílio de três homens.
Tinha de escolher: ou o Cabo Horn ou o Estreito de Magalhães. Ora, para dobrar o Cabo Horn na direcção do Pacífico, navega-se contra o vento, contra a corrente e num mar encapelado terrível em rebentações. Optou pelo Estreito de Magalhães, tarefa que também nada tem de fácil já que tinha de fazer bordos consecutivos contra rajadas vindas das montanhas. É necessário conhecer o Estreito para avaliar as dificuldades que acarreta para os navegadores.
Em Abril, no Pacífico avistou a ilha de Juan Fernandez, onde viveu Robinson Crusoe.  Faz escala em múltiplas ilhas, que o apaixonam e convidam a ficar. Mas o apelo do mar era bem mais forte – não sei bem se Slocum nessa altura seria “infeliz em terra e infeliz no mar”... Passou a Sul da Nova Caledónia e depois de uma violenta tempestade, em Outubro de 1896, Sydney na Austrália.
Continua a sua viagem pelo Sul, arriscando-se nos “rugidores quadragésimos graus”. Dirige-se depois para a Tasmânia onde permaneceu até Abril de 1897. Passando obrigatoriamente pela Grande Barreira, atravessou o Estreito de Torres e aportou às ilhas Keeling, donde partiu a 22 de Agosto.
O Índico apesar de não ser um mar propriamente calmo, não lhe levantou problemas. Passa Rodriguez e a ilha Maurícia, atingindo Durban, donde parte em Dezembro de 1897 para dobrar o Cabo da Boa Esperança. Em Abril de 1898 está em Santa Helena.
Slocum, tendo por companhia uma aranha – que o gracejo nos seja permitido – completa a sua volta ao mundo a 8 de Maio de 1898, em 2 anos, sete meses e seis dias, navegando na rota dos alísios, por onde aliás já tinha passado aquando da sua partida.
Após viagem que excedeu as 46.000 milhas náuticas estava em solo dos Estados Unidos.

Continuou sempre a navegar. Mas em 1909, aos 65 anos de idade, desapareceu com o seu Spray sem deixar rasto.


Estará sepultado com o seu “fiel amigo” nas profundezas.
Nasceu para o Mar e morreu no Mar, a sua única e verdadeira Paixão.



VITO DUMAS


Vito Dumas depois de ter atravessado o Atlântico, retomou a agricultura na sua quinta na Argentina.

Mas, o mar chamava-o. Nessas horas, observava e analisava as suas cartas marítimas, do Atlântico Sul, do Oceano Índico e do Pacífico Sul. Nestas estava escrito em espanhol entre o Cabo, a Tasmânia e Horn: “rota impossível”.
O possível já tinha sido feito por Slocum, Gerbaut, Bernicot. Faltava o impossível, a volta ao mundo de Cabo a Cabo pelos “cuaranta bramadores” – os “roaring fortis” – ou se se quiser, “os rugidores quadragésimos graus”, zona situada ao Sul do paralelo 40 onde as rajadas do sector oeste são constantes e o mar que se dispõe em anel em torno do continente polar austral, em virtude de não sofrer qualquer quebra por inexistência de terra, se transforma em tenebroso temporal desfeito com vagas gigantescas.


Será interessante realçar, que Dumas nessa zona onde as ondas atingem 16 metros e mais, onde o mar trabalha cruzado, não se põe de capa. Continua a rumar com o tempo, provavelmente com traquete e mezena, mantendo assim o equilíbrio (precário?!) do veleiro. Não reduz o pano. Cavalga as vagas numa velocidade arrepiante: chega a atingir 15 nós.
É ele próprio que confessa, que a princípio é perturbante. No entanto acomoda-se, habitua-se e conclui que andando tão depressa quanto a onda, esta deixa de constituir um perigo.
A teoria de Dumas, mesmo que correcta e validada pelo vencimento da Rota Impossível, não é aconselhável... As contra-indicações abundam, a menos que estejamos perante um navegador com a sua genialidade.


Dumas faleceu em 1966 e no nosso entender, apenas em 1966/67, Chichester fará melhor.


SIR FRANCIS CHICHESTER

Chichester, velejador experimentado, quis bater em velocidade os veleiros mais rápidos do mundo de todos os tempos, em longas viagens, os célebres clipppers de lã do século XIX, na sua própria rota; volta ao mundo com uma só escala na Austrália. Fê-lo com 65 anos.
Escolhe um barco grande e pesado, o Gipsy-Moth IV, ketch de 16,30 m, 79 metros quadrados de velame e casco de 12 toneladas.


Vencer os clippers de lã, veleiros rápidos de 3 mastros – quem é que ainda não ouviu falar do Cutty-Sark, com 3000 metros quadrados de pano e uma tripulação de 45 homens – que iam o mais rapidamente possível de Plymouth a Sidney para carregar lã e procuravam regressar a Inglaterra com a rapidez necessária para ganhar vantagem aos concorrentes, não se afigurava tarefa fácil para um só homem. Clippers que chegaram a demorar apenas 100 dias.

Por alguns dias não bateu o tempo dos clippers, e regressando a Inglaterra passa pelo Cabo Horn num feito inédito, sempre nos “roaring fortis”.



Queremos ainda citar o feito inédito de AL HANSEN (1928-1934), navegador norueguês que partindo de Oslo, no Mary-Jane, cúter de 11 metros, na direcção da Argentina passou o Cabo Horn de Leste para Oeste, remontando a Costa da Patagónia, contra mar, ventos e correntes. Desaparecido em Chiloé.




Todos estes solitários e outros que não citámos passaram por inúmeras provações e avarias. Talvez se exceptue JACQUES-IVES LE TOUMELIN, que de 1949 a 1952 deu a volta ao mundo, parcialmente em solitário – foi acompanhado pelo fotógrafo Paul Farge, na travessia do Atlântico e até ao Tahiti – no Kurun, cúter de 10 metros de fora a fora, 8,36 m à linha de água, 3,55 m de boca, calado de 1,70 m e quilha de ferro fundido com 1900 kg, sem qualquer avaria ou pano rasgado.






Para além destes, mencionemos ainda que sumariamente alguns outros:

ALAIN BOMBARD


A aventura experimentalista já mencionada e realizada em 1952 por  Bombard é uma referência de base para todos os navegadores solitários que o seguiram.
Também não podemos olvidar POON LIM, náufrago à deriva numa jangada no Atlântico durante cerca de 130 dias, sem víveres.

Provavelmente terá sido esta deriva forçada em solitário que influenciou a louvável e corajosa atitude do Dr. Alain Bombard.


ALFRED PETERSEN

Alfred Peterson, cidadão americano, no Stornoway, cúter de 10 m, partiu de City Island numa viagem de circum-navegação em Junho de 1948, passando pelo Canal do Panamá e pelo Suez. Aterrou em Nova Iorque a 18 de Agosto de 1952.


CAPTAIN BERNICOT

Bernicot, de 52 anos de idade, parte de Carantec em 1936 no Anahita, sloup marconi de 12,50 m por 3,50 m de boca e calado de 1,70 m; passa o Estreito de Magalhães e chega a Verdon, num ano e 9 meses.



CAPTAIN JEAN GAU

Gau nasceu em França, mas naturalizou-se americano.
Em 15 de Junho de 1936 parte de Nova Iorque no Onda II, palhabote de 12 m. Encalha perto de Cádis.

No Atom, ketch de 9 metros de comprimento, com 3 m de boca a calar a 1,40 m, no dia 28 de Maio de 1947 parte de Nova Iorque, passa pelos Açores e aporta em Valras-Plage.

No ano de 1949, no mesmo veleiro, parte de Valras-Plage, passa pelo Funchal e atinge Montauk, perto de Nova Iorque, em apenas 55 dias.

De 1955 a 1957, viagem de circum-navegação realizada no Atom. Nova Iorque, Durban, Ascensão, Açores, Gibraltar, Valras-Plage e Nova Iorque no dia 27 de Junho de 1957.

Como se não bastasse, de 1964 a 1967, segunda volta ao mundo. Parte de Valras-Plage em Maio de 1964, Tahiti, Auckland, Nova Guiné, Durban. Depois de ter adernado e com o mastro partido, ruma na direcção de Mossel-Bay. Não faz escala no Cabo e dirige-se a Porto Rico. De seguida Miami e Nova Iorque.


CAPTAIN LIONEL W. B. REES

Com partida no May, ketch de 9,75 m, fez no Inverno a travessia de Inglaterra às Bahamas.


CAPTAIN ROMER

O Capitão Romer, alemão, num kayak de 6 m por 0,95 m, com calado de 0,25 e uma vela de ketch adaptada (Deutsches Sport), parte do Cabo de S. Vicente em 17 de Abril de 1933. Aporta nas Canárias 11 dias depois. Parte das Canárias a 3 de Junho e atinge Saint-Thomas nas Antilhas.
Malogradamente perdido na rota para Nova Iorque.



REGATA ATLÂNTICA DE LESTE PARA OESTE – O CORONEL HASLER

Na primeira regata Atlântica impulsionada pelo Coronel Hasler, realizada no ano de 1960, ficam os nomes dos cinco primeiros navegadores solitários:

1.º - FRANCIS CHICHESTER

2.º - CORONEL HASLER

3.º - DAVID N. LEWIS

4.º - VAL HOWELS

5.º - JEAN LACOMBE


DR. HANS LINDEMANN

No ano de 1955, Lindemann na Liberla, piroga em madeira com 7,5 m de comprimento ruma de Las Palmas a Santa Cruz nas Antilhas.

Em 1956 num kayak de tela com borracha, faz a rota de Las Palmas a Saint Martin em 72 dias.


EDWARD ALLCARD

Entre 1949 e 1951, Allcard, circum-navegador, no Temptress, yawl de 10 m de comprimento parte de Helford na Cornualha. Gibraltar, Nova Iorque, onde aportou a 5 de Agosto de 1950. Em 17 de Julho de 1951 chega a Plymouth.


FRED REBELL

DE 1931 a 1933, no Elain, de 6 metros de comprimento com 2,15 m de boca, embarcação sem ponte nem motor auxiliar, faz o Pacífico de Ocidente para Oriente, partindo de Sidney e chegando a Los Angeles em 372 dias.


GUY CLABAUD

No Eole, ketch de 9,80 m de comprimento, parte para uma volta ao mundo de Las Palmas, no dia 23 de Outubro de 1958. Panamá, Tahiti. Atinge as Ilhas Loyauté em Junho de 1960 e morre de doença – icterícia.


HANS DE MEISS-TEUFFEN

No Spéranza, yawl com 10 m, em 1946 faz o Tamisa e depois o Atlântico sem escala em 58 dias – de Casablanca a Nova Iorque.


HARRY PIDGEON

Americano, de 47 anos de idade quando partiu para a volta ao mundo no Islander, sea-bird de 10,5 m de comprimento, 3,20 m de boca e 1,50 m de calado, volta iniciada no ano de 1921 e terminada em 1925, após 3 anos e 11 meses de mar. Los Angeles, Estreito de Torres, Cabo, Panamá, Los Angeles.

De 1932 a 1937, no Islander realiza pela segunda vez a volta ao mundo – de Nova Londres a Nova Londres, passando pela Nova Guiné.


J. G. KUYT

No ano de 1937, no Holland, veleiro com 11,5 m, o holandês Kuyt é acompanhado por um outro tripulante na travessia entre África e a Guiana. No entanto, o companheiro é acometido por febres muito elevadas e Kuyt para além de manobrar sozinho, aplica-lhe compressas frias durante praticamente toda a viagem, salvando-o.


JEAN LACOMBE

No ano de 1955, Lacombe com 36 anos de idade, no Hippocampe, cúter marconi de 5,5 m de comprimento, parte de Marselha na direcção das Canárias. Parte de las Palmas a 15 de Novembro de 1955 chegando a Porto Rico em 67 dias. Dirige-se a Atlantic City e aporta em Nova Iorque a 27 de Julho de 1956.

Participa na regata Atlântica de 1960 ficando em quinto lugar – travessia realizada em 74 dias; o vencedor, Chichester, conseguiu obter um tempo notável: 40 dias.


JOHN GUZZWELL

Em 1955 Guzzwell, de 25 anos, decide-se a partir para uma volta ao mundo no Trekka, yawl com o comprimento de 6,25 m.
Parte de Victória na denominada Colômbia canadiana, em Setembro. S. Francisco, Honolulu, Samoa, Nova Zelândia. Aqui interrompe a sua viagem durante cerca de dois anos. Sidney, Estreito de Torres, Durban, Panamá, Galápagos, Hawai e chegada a Vancouver.


LEE GRAHAM

Lee, com apenas 17 anos, parte da Califórnia em Junho de 1965 no Dove, um sloup. Novas Hébridas, Nova Guiné, Indonésia. Daí ruma à África do Sul para a viagem de circum-navegação.


MARCEL BARDIAUX

Bardiaux deu a volta ao mundo pela Ilha Horn no Les Quatre-Vents, marconi de 9 m de comprimento, 2,70 m de boca e um calado de 1,45 m.
Parte do Havre em 1950. No Verão de 1951, gasta 28 dias de Dacar ao Rio de Janeiro. No Verão de 1952 dobra o Cabo Horn. Ushuaia, Quellon, Valparaíso. No ano de 1953 está em Coquimbo e depois em Papeete. Chega a Durban em finais do ano de 1955 e Santa Helena e Pernambuco em Outubro de 1956. Point-à-Pitre e Nova Iorque em Agosto de 1957. Chega a França em Setembro de 1958.


MARIN-MARIE

Em 1933, Marin-Marie no Winibelle II, cúter com 11 metros de comprimento, 3 m de boca e 1,75 m de calado, parte de Dourarnenez ao Funchal, que percorre em 14 dias. Funchal – Fort-de-France (29 dias) e de Fort-de-france a Nova Iorque – 21 dias.
Utiliza os traquetes gémeos, uma invenção de extrema utilidade.

Em 1936, no Arielle, atravessa o Atlântico a motor; um barco de 13 metros com um motor de 50 cv e 5000 litros de gasóleo, capaz de fazer 8 nós – atente-se que este barco já estava munido de um leme automático.


TOMMY DRAKE

Drake é um célebre navegador americano.
Parte pela primeira vez em 1920 com 53 anos de idade. Faz várias travessias e contam-se múltiplos naufrágios em quatro palhabotes.


WILLIAM ANDREWS

Andrews, no Sapolio que veio a ser cognominado “ataúde flutuante”, sloup de 4,40 por 1,67 de boca e 0,92 de calado, parte de Atlantic City em Julho de 1892 e chega a Palos em Espanha em 84 dias.


WILLIAM WILLIS

Nascido na Checoslováquia naturalizou-se americano.
Em 1954, com 61 anos, na Sept-Petites-Soeurs, jangada aparelhada em yawl, percorreu a distância de 6700 milhas entre o Peru e Pago-Pago em 115 dias.

Já com 70 anos, na AGE UNLIMITED, jangada de aço com 9,60 m, parte de Callao em Julho de 1963. Atinge Samoa a 11 de Novembro; Austrália e os lemes partem a 500 milhas.

O SOLITÁRIO NÃO TEM IDADE... 


Nos nossos dias são muitos os solitários. Para além destes – diga-se impropriamente, no seu estado “puro” – surgiram os solitários das regatas oceânicas, que foram idealizadas em 1960 pelo Coronel Hasler, reformado da Royal Navy e a quem já nos referimos.



Com o devido respeito, não faremos comparações. Para o solitário clássico, há mar, mar e céu, o amor do Mar, o prazer e gosto da natureza sem gente, o eterno agora sem tempo, enquanto que para o solitário de regata há terra e terra, o mar é tempo e o tempo vitória.
Mas o Amor transcende o tempo...


Gostaria de referir em todos os que enfrentaram os mares, os marinheiros portugueses dos Descobrimentos.
Kammerer, na obra La Mer Rouge, L'Abyssinie et L'Árabie dans L'Antiquité referiu-se aos Descobrimentos de Portugal, realizados em navios de pequeno porte por homens "a muito custo capazes de defrontar os Oceanos, com mesquinhos recursos financeiros e um pessoal apto para todas as tarefas, preparados para viver no mar, durante largos meses, de toucinho podre e água estagnada, animados dum espírito de aventura que confunde a mais elementar compreensão". 

A estes referimo-nos na nossa Breve História da Náutica e dos Descobrimentos »
http://historiadosdescobrimentos.blogspot.pt/




JOSÉ MARIA ALVES
(PATRÃO DE ALTO MAR)




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